“Oh ! Que saudades que tenho. Dos tempos da minha infância, da vida em exuberância. Que nestes versos desenho”… A poesia ‘Com Licença, Casimiro’, de autoria do EPPGG Péricles Monteiro, foi classificada no I Concurso Literário do Servidor Público.
Este e os demais poemas classificados podem ser lidos e votados no Portal do Servidor.
Abaixo, o poema de Péricles na íntegra:
COM LICENÇA, CASIMIRO
Péricles Monteiro
Oh ! Que saudades que tenho
Dos tempos da minha infância,
Da vida em exuberância
Que nestes versos desenho.
Das coisas que aqui resenho
– Se a memória não falhar –
Alguns hão de se lembrar
Sem esconder um suspiro.
Com licença, Casimiro,
Eu preciso recordar.
Era um tempo de sonhar,
Usar imaginação,
Não tinha televisão
Para a mente conformar.
Bastava apenas pensar
E tornar-se aventureiro:
“Quer dizer que sou bombeiro,
Patente de coronel,
No quintal tem um quartel,
No pé de tamarineiro!”.
Aí eu viro um arqueiro
Do bando de Robin Wood.
E pro rei com quem não pude,
Digo “dois alto”, matreiro;
Imune, eu sou o primeiro,
Cabo da tropa fingida,
Dou comando, ordem-unida,
Até que uma voz chama:
“Toma banho e vai pra cama;
Amanhã, tem nova lida!”. 2
Da aurora da minha vida,
O amanhecer em centelhas:
O sol nas frestas das telhas,
A luz entrando atrevida;
Fio de mágica descida,
Que tento pegar com a mão,
Mas ele não deixa, não,
Me escapa por entre os dedos
E se vai com seus segredos,
Mudando de direção.
E quanta disposição,
Já acordava com fome.
“Menino que muito come,
Cresce e fica sabichão!”
Quem dá sustança é feijão!”
“Se não comer cai na peia!”
E tome mingau de aveia,
Leite, cuscuz, aipim,
Sobremesa de pudim;
“O que sobrar vai pra ceia!”.
Assim, de barriga cheia,
Corria para a escola,
Dando chute em pedra e bola
Na paleta pela areia,
No barro que enlameia
A alpercata curtida,
E na cabeça a batida:
“Só aprende quem se esforça,
Se não vai puxar carroça
Por todo o resto da vida!”. 3
Da minha infância querida,
Lembro os bancos escolares,
Alisados aos pares.
Um dividir que convida
A somar na acolhida,
A juntar-se ao diferente.
Uma mistura de gente,
Compartilhando o espaço,
A régua e o compasso,
Pluralizando o ambiente.
A disciplina exigente
Do bolo de palmatória,
Quando falhava a memória
(Decoreba inteligente!).
Mesmo não sendo parente
– Como hoje chamam “tia” -,
A professora agia
Como a um filho adotado,
Ensinando com cuidado
Como a própria mãe faria.
Somava, subtraía,
Aprendia a tabuada,
Soletrava “tro-vo-a-da”,
Botava agá em Bahia.
Mas se o dever não fazia,
Com as respostas ideais,
Não escapava jamais
De cem vezes escrever
“A lição devo fazer”,
Fora o bilhete pros pais. 4
Que os anos não trazem mais!,
Hoje sei, por isso penso,
Cada vez mais me convenço,
Que estes dias digitais,
Com seus padrões tão iguais,
Cerceiam a vida plena
E fazem a alma pequena,
Como dizia o poeta.
E a gente quase vegeta
Vendo sempre a mesma cena.
A vida se oxigena
Com o ar da liberdade,
Como a de passar a tarde,
Que cai tristonha, serena,
Numa rua tão amena.
Se o locutor anuncia
Lá do alto a Ave-Maria,
Faz que um menino capeta
Não resista e se derreta
Com a triste melodia.
Entretanto, a alegria
Volta, assim, num repentino.
O sol não tá mais a pino,
Porém mal começa o dia
Pra se fazer arrelia.
É quando certos odores
Chegam aos nasais sensores,
E um pirralhinho aconselha:
“É quem está com a mão vermelha;
Examinem-se, senhores!”. 5
Que amor, que sonhos, que flores,
O firmamento brilhante
Num cenário deslumbrante,
(Quem terão sido os pintores,
Artesãos e escultores?)
De o olhar fazer rugas,
O dedo encher de verrugas
De tanto contar estrelas;
Que alegria ao vê-las
Cadentes em suas fugas!
Não importa se madruga,
Se nuvens cobrem o céu,
Nelas vejo um corcel,
Elefante, tartaruga.
Devaneio que conjuga
Quase nada a quase tudo,
Pois um menino abelhudo
Vê tanta coisa num vulto,
O que não pode um adulto
Com o seu pensar sisudo.
Como era bom jogar ludo,
Ponga d’água e fura-pé;
Com um ovo na colher,
Correr num saco graúdo.
E usava-se de tudo
Que virasse brincadeira:
O mamão era a caveira;
Uma tábua e muito afã,
E o carro de rolimã
Despencava na ladeira. 6
Naquelas tardes fagueiras,
Ia empinar arraia;
E no meio da gandaia,
A provocação guerreira:
“Minha linha é de primeira!
Quem quer ‘vim’ no barandão?,
Corto linha e cordão!”.
“O meu gunho é arretado,
O meu nó é alinhado,
Meu tempero é de limão!”.
Pra brincar de batalhão,
Bastava arrumar patente.
Escolhido o tenente,
Tava pronto o pelotão.
Mas se errasse na função,
O castigo tinha vez:
O corredor polonês,
Passa-ponte ou calça meia
Ou cascudo com areia,
Era ao gosto do freguês.
Meninas nas matinês,
Lá nas rodas das cirandas;
E o povo nas varandas
Ouvindo o canto da vez:
Agora passarás, três;
De sete, namoradeira;
Sou carioca e mineira;
Sou pobre e também sou rica,
Demarré. Minha casa fica
Lá na Praça do Ferreira. 7
À sombra das bananeiras,
Descansava do batente,
Pois brincar dava na gente
Uns momentos de canseira.
Porém, naquela leseira,
Já chegava a imagem
Da próxima traquinagem:
De fazer cobra de cinto,
Dando susto no distinto
No momento da passagem.
Olhando a paisagem,
Via os pés de sapoti,
O canto do bem-te-vi
Denunciava a sondagem.
Quando chegava a coragem
Que o temor dissimula,
Falava mais alto a gula
E, antes de jogar o baba,
Ia roubar manga e goiaba
Lá num sítio do Cabula.
“Arte” que só se formula
No tempo e local propício.
Hoje não tem mais resquício
Do meio que estimula.
O pau de sebo, a picula,
O guerrô já não há mais.
Criança se satisfaz
Em frente do videogame,
E mesmo que a casa queime,
Não abala o rapaz. 8
Debaixo dos laranjais,
Chupava fruta de vez;
E, imaginem vocês,
Quando vinham os sinais
De enjôos anormais,
De mal-estar no intestino,
O remédio era rícino;
Golão de venta fechada,
E a alma era lavada
Com as entranhas do menino.
Hoje ao invés de quinino,
Da medicina caseira,
Tomo uma caixa inteira
De um remédio ultramarino,
Que quando a bula examino
Dá vontade de chorar,
Com saudades do meu chá
De cidreira, hortelã,
Capim santo, alumã
Ou tapete de oxalá.
Se amarga o paladar,
Se arde na ferida,
É sinal que, quem duvida?,
O remédio vai curar.
Mas também vai preparar,
Com a lágrima que chora,
Uma vida em sua aurora,
Pela experiência dura
Da dor e da amargura
Que o caráter aprimora. 9
O tempo, veloz por fora,
Parece parar por dentro
Para quem, bem lá do centro
Do coração, sempre aflora
Tudo o que viveu outrora
Com muita satisfação,
Porque tal evocação
De verdor nos alimenta,
Nos conforta e nos alenta,
E nos traz renovação.
Se a infância o cidadão
Teve em sua plenitude,
Não vai buscar juventude
Fora de ocasião,
Carente de emoção.
Eu vou viver a lembrar,
Com saudade salutar,
De um tempo que admiro.
Com licença, Casimiro,
Eu preciso recordar.